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domingo, 24 de julho de 2016

A Boneca ( ou A Trajetória de um Espírito Perturbado )por André C. Oliveira



1993

Bianca e sua amiga Marta saíram da escola e foram para sua casa. Ao chegar, como de costume, a mãe de Bianca prepara um lanche para as duas. Após lancharem as garotas vão para o quarto para brincar com Lili. Lili era uma boneca de porcelana que as menina acharam no porão e que pertencia á avó de Bianca. A boneca era quase do tamanho das duas e tinha um lindo vestido no estilo vitoriano. E apesar de terem 14 anos as duas gostavam de brincar com a boneca. Tomavam chá da tarde com ela, contavam histórias, enfim, pareciam três amigas.
Um dia ao chegar, as meninas se dirigiram ao quarto, porém ao entrar, viram que a boneca não estava no lugar de costume. Além disso, o quarto estava um pouco bagunçado como se alguém tivesse remexido ali. Alguém que pegou a boneca. Mas por que ?Sua mãe não estava em casa naquele dia. Será que alguém entrou na casa? Quando as garotas iam sair do quarto, elas se deparam com algo que as deixou sem palavras. A boneca estava em pé, no canto do quarto olhando diretamente para elas, com uma expressão que parecia assustada.
Bianca e Marta não sabiam o que fazer. Mal dava para acreditar no que estavam vendo. Foi Marta que criou coragem primeiro e foi se aproximando de Lili. Chegou perto e a tocou de leve. A boneca ainda estava assutada e se retraiu. Marta pode sentir sua pele fria de porcelana.
- Você...você fala?
- S-sim.
Mais alguns instantes de silencio enquanto as três tentavam assimilar a situação. Desta vez foi Bianca que quebrou o silencio.
- Mas como? Como você esta viva?
- Eu não sei. Minha cabeça. Minha cabeça esta doendo.
- E agora, existe remédio pra dor de cabeça de boneca – Marta disse tentando amenizar a estranheza da situação.
- Eu não sei – disse Bianca – Definitivamente não sei.

1996

Bianca estava na sala assistindo TV enquanto seus pais se arrumavam para sair. Marta tinha ido para o cinema com Cristiano, então ficaria sozinha em casa esta noite. Assim que os pais saíram, Bianca foi para o quarto. Bateu cinco vezes na porta antes de entrar. Ao entrar viu a boneca sentada em sua cadeira sorrindo para ela.
- Oi Lili. Acho que você pode sair um pouco. Mas lembre-se. Longe das portas e janelas.
- Tudo bem. É chato ficar aqui o dia inteiro. Queria poder sair.
-Já conversamos sobre isto. Não dá para uma boneca sair por ai andando sozinha.As pessoas ficariam assustadas.
- Mas você e a Marta não ficaram.
- Bom, como diz minha mãe: nós não somos todo mundo.
Bianca observava a boneca enquanto ela caminhava pela casa. Tinha sido difícil para ela e Marta manterem Lili escondida. Bianca ainda se lembra da primeira vez que viram a boneca viva. Naquele dia Marta acabou ficando para dormir. Bianca foi para cama e quando acordou pensou que tudo tinha sido um sonho, porém la estava a boneca de pé olhando para ela. As duas amigas perguntavam se Lili sabia como tinha acontecido aquilo porém tudo que a boneca dizia era que não se lembrava de nada. Que sabia que tinha que fazer algo mas não lembra o que. A partir de então a missão das duas amigas era manter a boneca fora da vista de outras pessoas e entretê-la para que ela não ficasse entediada. Por vezes a boneca insistia em querer sair para se divertir mas as garotas sabiam dos riscos que isto traria e com dificuldade convenciam a boneca. Com o tempo deixaram de tentar entender o que aconteceu.

2002

Bianca finalmente chegou em sua casa. Tinha tido um dia difícil no trabalho. Mas agora tinha que deixar isto para trás. O seu grande amor já devia estar em casa e não queria lhe perturbar com seus problemas. Como de costume, antes de abrir a porta, bateu cinco vezes. Marta estava na cozinha já preparando o jantar. Se cumprimentaram com um beijo e Bianca perguntou por Lili.
- Esta la no quarto fazendo um vestido. Não é que ela tem jeito para costura¿
- Ainda bem por que estes vestidos que ela gosta são caros. Quem sabe a gente não põe ela para costurar para a gente vender.
- Engraçadinha. Isto seria trabalho infantil.
- Infantil? Ela é mais velha que nós duas juntas.
As duas riam juntas. Agora que tinham sua própria casa ficava mais fácil esconder Lili, embora seus amigos e parentes não entendessem a insistência das duas quererem ficar com a boneca mesmo depois de casadas. Achavam que faziam isto para suprir a falta de um filho. De certa forma era verdade. Lili era como um filha para as duas. Claro que elas pensavam em adotar uma criança de verdade, porém precisavam pensar muito nas consequências de tal ato. Por enquanto estavam satisfeitas com a vida que tinham.

2006

Bianca estava desesperada. Saiu ás pressas do trabalho e chegou em casa o mais rápido que pode. Marta havia ligado para ela dizendo que Lili sofreu um grave acidente. Bianca chegou em casa e encontrou Lili deitada em uma mesa improvisada. Marta estava colando uma parte do braço dela. Bianca percebeu que outras partes já haviam sido coladas. Entretanto, no lado esquerdo o lado esquerdo do rosto estava coberto com um pano.
- O que aconteceu?
- Eu estava limpando o chão da cozinha...ai ela escorregou. Ela caiu, bateu na pia. Eu...foi culpa minha.
- Calma, tente ficar calma. Ela esta bem¿ Quer dizer...ela...
- Ela estava mexendo o olho. Pedi para que não se movesse até a cola fazer efeito. Para não ter perigo de agravar.
- E o rosto dela?
- Ela...o olho esquerdo quebrou. Vou ver se arrumo outro. Vou ter que pedir pela internet. Mas tem outra coisa. Dentro dela, na parte das costas, havia uma... um tipo de faca.
- Uma faca?
- Faca, espada. Sei la. Esta ali em cima da pia.
Bianca olhou o objeto. Era uma especie de adaga dentro de uma bainha. Estranhos símbolos enfeitavam o cabo. Bianca pegou e retirou a lamina de dentro da bainha. Sentiu como se um tipo de força saísse de dentro da adaga,entrasse pela sua mão, percorresse todo seu corpo e finalmente sai pela mão retornando á adaga. Só saiu de seu estado de transe por que escutou Marta gritando com ela.
- Deixa esta porcaria para lá. Me ajuda aqui caramba.
Bianca foi, porém não conseguia tirar aquela sensação da cabeça.

2007

Bianca estava pensativa em sua cama. Ao seu lado Marta dormia tranquilamente. Ela porém não consegui pegar no sono. Ficou repassando o que aconteceu com ela neste ultimo ano. Elas conseguiram consertar Lili, apesar de que, mesmo colocando outro olho no lugar do olho esquerdo perdido, ele não funcionou. Lili enxergava agora com um olho só. O outro apenas enfeitava seu rosto. Nem piscar ele piscava. Elas demoraram mas acabaram se acostumando. O mais estranho porém foi a tal adaga. Desde a primeira vez que á tocou, Bianca não consegui esquece-la. Teve estranhos pesadelos durante as primeiras noites. Marta aconselhou se livrar do objeto porém ela se recusava. Lili tinha também uma impressão da adaga mesmo sem saber por que. Mas sabia que ela não traria nada de bom. Mas Bianca insistia em ficar com a lamina. Neste tempo chegou á abrir a lamina mais uma vez porém ao faze-lo passou mal, chegando á vomitar um liquido fétido e viscoso. Depois disso prometeu á Marta que não abriria mais, mas que precisava manter a lamina consigo.

2010

Bianca estava descontrolada. Sua obsessão pela lamina ficava mais forte com o passar do tempo. Dizia que a lamina falava com ela através dos sonhos e que tinha grandes propósitos para ela. Porém a adaga estava com fome e precisava se alimentar. Começou com pequenos ratos, depois passou para gatos e até mesmo um boi e uma cabra. Mas nada saciava o apetite da adaga. Lili estava assustada e insistia para que Bianca se livrasse do objeto. Sentia uma repulsa enorme pela adaga desde a primeira vez que a viu. Marta tentava de tudo porém, quando não estava com a lamina, Bianca a escondia em um lugar onde Marta não encontrava.
A situação se tornou insuportável para Marta que decidiu ir embora.
- Você precisa de ajuda Bianca. Deixe eu te ajudar. Podemos ir á um psicologo.
- Não estou louca. Você que não entende a adaga. Eu sim a compreendo. Por isso ela me escolheu.
- Lili vai embora comigo.
- O que? Não. Você não pode fazer isto. Ela era a boneca da MINHA avó portanto ela é minha.
- Ela não só um objeto. Parece que você se esqueceu até mesmo disto. Além do mais, ela está assustada. Precisa sair daqui.
- Quando você estiver boa eu volto. Promete que vai ficar boa?
Bianca não falou nada. Apenas segurava a adaga com lágrimas no rosto. Com os olhos turvos, pelas lagrimas ou pela loucura viu Marta e Lili deixarem a casa.

2012

Bianca agora é só um trapo. Um amontoado de carne e osso. Uma sombra do que já foi um dia. Como se a adaga estivesse consumindo sua vitalidade. Marta olhava para ela com pena e com raiva ao mesmo tempo. Desde que saiu daqui é apenas a terceira vez que vem. E a primeira que trás Lili. Achou que talvez a presença de lili trouxesse Bianca á realidade nem que por um tempo. Talvez nesse tempo ela pudesse achar um meio de resgatar a amiga. Porém Bianca estava indiferente á tudo. Sua atenção estava voltada á adaga.
- Sinto muito por você Bianca. Tentei te ajudar mas já vi que você não tem conserto. Esta é a ultima vez que nos vimos. Vou embora para o Canadá. Recomeçar minha vida. Lili, claro vai comigo.
- Me consertar? Não tente me consertar. Eu não estou quebrada. Você não entende mas eu entendo. E agora eu e a adaga somos quase como uma só criatura. Eu estou perto da comunhão final.
- Infelizmente eu já sei onde isto vai dar e não quero estar por perto. Eu só lamento
- Lamenta?- Bianca então começa a tirar adaga da bainha.
- Não faça isto. Se no começo você já passou mal imagina o que pode te acontecer neste estado.
- Por favor não! – Lili corre em direção á Bianca desesperada por impedi-la. Marta porém a segura. 
– Vamos embora não quero que veja isto.
Bianca retira a lamina e depois de um grito que parecia uma eterna agonia ela começa a se contorcer. Sua carne se desforma e ela começa á se transformar em algo não humano. Com o mesmo cheiro fétido de anos atrás.A criatura, que mais parece uma gosma viva, vai surgindo diante de Marta e Lili que ficam sem reação. Então o monstro agarra Marta. Lili tenta inutilmente deter a criatura. Começa a se ouvir batidas e gritos no lado de fora da porta. A criatura então se lança em direção á Marta. O corpo da mulher queima e se dissolve em uma espécie de ácido, enquanto a criatura lhe encobre por completo. Os gritos de dor ecoam até finalmente silenciarem.
A porta é arrombada. Os vizinhos entram e encontram apenas Bianca caída nua no chão, uma poça de vomito e uma adaga ao seu lado. A policia chega e faz uma varredura no local. Ninguém entende direito o que aconteceu ali.

2016

Bianca conta o que aconteceu. Conta como se tornou uma criatura que devorou a pessoa que ela amava. Conta como vomitou depois que voltou á si, por se lembrar da brutalidade do ato que acabara de cometer. Conta que viu Lili olhando para ela com raiva e depois fugindo para não se sabe onde. Bianca procurou pela boneca porém nunca á encontrou. Nem sabe se ela está bem ou não. Quanto á adaga, Bianca não quis mais saber. A policia levou e ela não se interessou em recupera-la. Parecia que o trauma a fez se libertar da influência da lamina. Ou talvez, uma vez saciado seu apetite, a adaga não precisava mais dela. Seja como for, parecia ter despertado de um terrível pesadelo. Porém tinha sido real. E as consequências estavam ali á assombrando. Já não tinha mais o seu grande amor ao seu lado. Marta se foi pra sempre. E Lili também estava perdida e Bianca já não tinha mais esperanças de encontra-la. Durante estes anos tudo que ela queria era poder consertar os erros do passado.
E aqui esta ela, diante de um misterioso feiticeiro que diz poder ajuda-la. O dinheiro guardado todo este tempo será bem empregado. O feiticeiro é capaz de envia-la de volta ao passado.
- Hmn, bonecas falantes, adagas misteriosas, criaturas estranhas. Sua história é interessante.
- O senhor pode mesmo me ajudar.
- Talvez sim.
- Como assim talvez?
- Bem minha cara, há muitos fatores em questão. Não posso enviar teu corpo ao passado, apenas o espirito. Então chegando la teu espirito terá de buscar um receptáculo. Mas isto não é o pior. Uma viagem dessa pode ter efeitos colaterais por causa da falta de estabilidade. Pode ser que você chegue ao passado sem se lembrar o que é ou o que foi fazer. Pode ser um estado temporário e alguns dia você se lembre. Pode ser que algum evento traumático te faça lembrar. Ou talvez você nunca lembre.
- É um risco que quero correr.
- Bom, que seja como você quer.

1993

Ela despertou em um lugar escuro. Não se lembrava de quem era ou como chegou ali. Se levantou e começou se mover devagar no escuro No caminho derrubou alguns objetos. De repente uma porta se abre e uma luz se acende. Seus olhos ficam ofuscados, desacostumados com a luminosidade. Aos poucos ela vai habituando a visão. Então ela vê duas garotas.Ela se assusta e as garotas olham diretamente para ela. Após alguns instantes uma das garotas se aproxima devagar e toca em seu corpo. Ela se retrai e a garota então pergunta:
- Você...você fala?
Ela sem saber ao certo o que dizer apenas responde
- S-sim.
Fim


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