1993
Bianca e sua amiga Marta saíram da escola e foram
para sua casa. Ao chegar, como de costume, a mãe de Bianca prepara um lanche
para as duas. Após lancharem as garotas vão para o quarto para brincar com
Lili. Lili era uma boneca de porcelana que as menina acharam no porão e que
pertencia á avó de Bianca. A boneca era quase do tamanho das duas e tinha um
lindo vestido no estilo vitoriano. E apesar de terem 14 anos as duas gostavam
de brincar com a boneca. Tomavam chá da tarde com ela, contavam histórias,
enfim, pareciam três amigas.
Um dia ao chegar, as meninas se dirigiram ao quarto,
porém ao entrar, viram que a boneca não estava no lugar de costume. Além disso,
o quarto estava um pouco bagunçado como se alguém tivesse remexido ali. Alguém
que pegou a boneca. Mas por que ?Sua mãe não estava em casa naquele dia. Será
que alguém entrou na casa? Quando as garotas iam sair do quarto, elas se
deparam com algo que as deixou sem palavras. A boneca estava em pé, no canto do
quarto olhando diretamente para elas, com uma expressão que parecia assustada.
Bianca e Marta não sabiam o que fazer. Mal dava para
acreditar no que estavam vendo. Foi Marta que criou coragem primeiro e foi se
aproximando de Lili. Chegou perto e a tocou de leve. A boneca ainda estava
assutada e se retraiu. Marta pode sentir sua pele fria de porcelana.
- Você...você fala?
- S-sim.
Mais alguns instantes de silencio enquanto as três
tentavam assimilar a situação. Desta vez foi Bianca que quebrou o silencio.
- Mas como? Como você esta viva?
- Eu não sei. Minha cabeça. Minha cabeça esta
doendo.
- E agora, existe remédio pra dor de cabeça de
boneca – Marta disse tentando amenizar a estranheza da situação.
- Eu não sei – disse Bianca – Definitivamente não
sei.
1996
Bianca estava na sala assistindo TV enquanto seus
pais se arrumavam para sair. Marta tinha ido para o cinema com Cristiano, então
ficaria sozinha em casa esta noite. Assim que os pais saíram, Bianca foi para o
quarto. Bateu cinco vezes na porta antes de entrar. Ao entrar viu a boneca
sentada em sua cadeira sorrindo para ela.
- Oi Lili. Acho que você pode sair um pouco. Mas
lembre-se. Longe das portas e janelas.
- Tudo bem. É chato ficar aqui o dia inteiro. Queria
poder sair.
-Já conversamos sobre isto. Não dá para uma boneca
sair por ai andando sozinha.As pessoas ficariam assustadas.
- Mas você e a Marta não ficaram.
- Bom, como diz minha mãe: nós não somos todo mundo.
Bianca observava a boneca enquanto ela caminhava
pela casa. Tinha sido difícil para ela e Marta manterem Lili escondida. Bianca
ainda se lembra da primeira vez que viram a boneca viva. Naquele dia Marta
acabou ficando para dormir. Bianca foi para cama e quando acordou pensou que
tudo tinha sido um sonho, porém la estava a boneca de pé olhando para ela. As
duas amigas perguntavam se Lili sabia como tinha acontecido aquilo porém tudo
que a boneca dizia era que não se lembrava de nada. Que sabia que tinha que
fazer algo mas não lembra o que. A partir de então a missão das duas amigas era
manter a boneca fora da vista de outras pessoas e entretê-la para que ela não
ficasse entediada. Por vezes a boneca insistia em querer sair para se divertir
mas as garotas sabiam dos riscos que isto traria e com dificuldade convenciam a
boneca. Com o tempo deixaram de tentar entender o que aconteceu.
2002
Bianca finalmente chegou em sua casa. Tinha tido um
dia difícil no trabalho. Mas agora tinha que deixar isto para trás. O seu
grande amor já devia estar em casa e não queria lhe perturbar com seus
problemas. Como de costume, antes de abrir a porta, bateu cinco vezes. Marta
estava na cozinha já preparando o jantar. Se cumprimentaram com um beijo e
Bianca perguntou por Lili.
- Esta la no quarto fazendo um vestido. Não é que
ela tem jeito para costura¿
- Ainda bem por que estes vestidos que ela gosta são
caros. Quem sabe a gente não põe ela para costurar para a gente vender.
- Engraçadinha. Isto seria trabalho infantil.
- Infantil? Ela é mais velha que nós duas juntas.
As duas riam juntas. Agora que tinham sua própria
casa ficava mais fácil esconder Lili, embora seus amigos e parentes não
entendessem a insistência das duas quererem ficar com a boneca mesmo depois de
casadas. Achavam que faziam isto para suprir a falta de um filho. De certa
forma era verdade. Lili era como um filha para as duas. Claro que elas pensavam
em adotar uma criança de verdade, porém precisavam pensar muito nas
consequências de tal ato. Por enquanto estavam satisfeitas com a vida que
tinham.
2006
Bianca estava desesperada. Saiu ás pressas do
trabalho e chegou em casa o mais rápido que pode. Marta havia ligado para ela
dizendo que Lili sofreu um grave acidente. Bianca chegou em casa e encontrou
Lili deitada em uma mesa improvisada. Marta estava colando uma parte do braço
dela. Bianca percebeu que outras partes já haviam sido coladas. Entretanto, no
lado esquerdo o lado esquerdo do rosto estava coberto com um pano.
- O que aconteceu?
- Eu estava limpando o chão da cozinha...ai ela
escorregou. Ela caiu, bateu na pia. Eu...foi culpa minha.
- Calma, tente ficar calma. Ela esta bem¿ Quer
dizer...ela...
- Ela estava mexendo o olho. Pedi para que não se
movesse até a cola fazer efeito. Para não ter perigo de agravar.
- E o rosto dela?
- Ela...o olho esquerdo quebrou. Vou ver se arrumo
outro. Vou ter que pedir pela internet. Mas tem outra coisa. Dentro dela, na
parte das costas, havia uma... um tipo de faca.
- Uma faca?
- Faca, espada. Sei la. Esta ali em cima da pia.
Bianca olhou o objeto. Era uma especie de adaga
dentro de uma bainha. Estranhos símbolos enfeitavam o cabo. Bianca pegou e
retirou a lamina de dentro da bainha. Sentiu como se um tipo de força saísse de
dentro da adaga,entrasse pela sua mão, percorresse todo seu corpo e finalmente
sai pela mão retornando á adaga. Só saiu de seu estado de transe por que
escutou Marta gritando com ela.
- Deixa esta porcaria para lá. Me ajuda aqui
caramba.
Bianca foi, porém não conseguia tirar aquela
sensação da cabeça.
2007
Bianca estava pensativa em sua cama. Ao seu lado
Marta dormia tranquilamente. Ela porém não consegui pegar no sono. Ficou
repassando o que aconteceu com ela neste ultimo ano. Elas conseguiram consertar
Lili, apesar de que, mesmo colocando outro olho no lugar do olho esquerdo
perdido, ele não funcionou. Lili enxergava agora com um olho só. O outro apenas
enfeitava seu rosto. Nem piscar ele piscava. Elas demoraram mas acabaram se
acostumando. O mais estranho porém foi a tal adaga. Desde a primeira vez que á
tocou, Bianca não consegui esquece-la. Teve estranhos pesadelos durante as
primeiras noites. Marta aconselhou se livrar do objeto porém ela se recusava.
Lili tinha também uma impressão da adaga mesmo sem saber por que. Mas sabia que
ela não traria nada de bom. Mas Bianca insistia em ficar com a lamina. Neste
tempo chegou á abrir a lamina mais uma vez porém ao faze-lo passou mal,
chegando á vomitar um liquido fétido e viscoso. Depois disso prometeu á Marta
que não abriria mais, mas que precisava manter a lamina consigo.
2010
Bianca estava descontrolada. Sua obsessão pela
lamina ficava mais forte com o passar do tempo. Dizia que a lamina falava com
ela através dos sonhos e que tinha grandes propósitos para ela. Porém a adaga
estava com fome e precisava se alimentar. Começou com pequenos ratos, depois
passou para gatos e até mesmo um boi e uma cabra. Mas nada saciava o apetite da
adaga. Lili estava assustada e insistia para que Bianca se livrasse do objeto.
Sentia uma repulsa enorme pela adaga desde a primeira vez que a viu. Marta
tentava de tudo porém, quando não estava com a lamina, Bianca a escondia em um
lugar onde Marta não encontrava.
A situação se tornou insuportável para Marta que
decidiu ir embora.
- Você precisa de ajuda Bianca. Deixe eu te ajudar.
Podemos ir á um psicologo.
- Não estou louca. Você que não entende a adaga. Eu
sim a compreendo. Por isso ela me escolheu.
- Lili vai embora comigo.
- O que? Não. Você não pode fazer isto. Ela era a
boneca da MINHA avó portanto ela é minha.
- Ela não só um objeto. Parece que você se esqueceu
até mesmo disto. Além do mais, ela está assustada. Precisa sair daqui.
- Quando você estiver boa eu volto. Promete que vai
ficar boa?
Bianca não falou nada. Apenas segurava a adaga com
lágrimas no rosto. Com os olhos turvos, pelas lagrimas ou pela loucura viu
Marta e Lili deixarem a casa.
2012
Bianca agora é só um trapo. Um amontoado de carne e
osso. Uma sombra do que já foi um dia. Como se a adaga estivesse consumindo sua
vitalidade. Marta olhava para ela com pena e com raiva ao mesmo tempo. Desde
que saiu daqui é apenas a terceira vez que vem. E a primeira que trás Lili.
Achou que talvez a presença de lili trouxesse Bianca á realidade nem que por um
tempo. Talvez nesse tempo ela pudesse achar um meio de resgatar a amiga. Porém
Bianca estava indiferente á tudo. Sua atenção estava voltada á adaga.
- Sinto muito por você Bianca. Tentei te ajudar mas
já vi que você não tem conserto. Esta é a ultima vez que nos vimos. Vou embora
para o Canadá. Recomeçar minha vida. Lili, claro vai comigo.
- Me consertar? Não tente me consertar. Eu não estou
quebrada. Você não entende mas eu entendo. E agora eu e a adaga somos quase
como uma só criatura. Eu estou perto da comunhão final.
- Infelizmente eu já sei onde isto vai dar e não
quero estar por perto. Eu só lamento
- Lamenta?- Bianca então começa a tirar adaga da
bainha.
- Não faça isto. Se no começo você já passou mal
imagina o que pode te acontecer neste estado.
- Por favor não! – Lili corre em direção á Bianca
desesperada por impedi-la. Marta porém a segura.
– Vamos embora não quero que
veja isto.
Bianca retira a lamina e depois de um grito que
parecia uma eterna agonia ela começa a se contorcer. Sua carne se desforma e
ela começa á se transformar em algo não humano. Com o mesmo cheiro fétido de
anos atrás.A criatura, que mais parece uma gosma viva, vai surgindo diante de Marta e Lili que ficam sem reação.
Então o monstro agarra Marta. Lili tenta inutilmente deter a criatura. Começa
a se ouvir batidas e gritos no lado de fora da porta. A criatura então se lança em direção á Marta. O corpo da mulher queima e se dissolve em uma espécie de ácido, enquanto a criatura lhe encobre por completo. Os gritos de dor ecoam até finalmente silenciarem.
A porta é arrombada. Os vizinhos entram e encontram
apenas Bianca caída nua no chão, uma poça de vomito e uma adaga ao seu lado. A
policia chega e faz uma varredura no local. Ninguém entende direito o que
aconteceu ali.
2016
Bianca conta o que
aconteceu. Conta como se tornou uma criatura que devorou a pessoa que ela
amava. Conta como vomitou depois que voltou á si, por se lembrar da brutalidade
do ato que acabara de cometer. Conta que viu Lili olhando para ela com raiva e
depois fugindo para não se sabe onde. Bianca procurou pela boneca porém nunca á
encontrou. Nem sabe se ela está bem ou não. Quanto á adaga, Bianca não quis
mais saber. A policia levou e ela não se interessou em recupera-la. Parecia que
o trauma a fez se libertar da influência da lamina. Ou talvez, uma vez saciado
seu apetite, a adaga não precisava mais dela. Seja como for, parecia ter
despertado de um terrível pesadelo. Porém tinha sido real. E as consequências
estavam ali á assombrando. Já não tinha mais o seu grande amor ao seu lado.
Marta se foi pra sempre. E Lili também estava perdida e Bianca já não tinha
mais esperanças de encontra-la. Durante estes anos tudo que ela queria era
poder consertar os erros do passado.
E aqui esta ela, diante
de um misterioso feiticeiro que diz poder ajuda-la. O dinheiro guardado todo
este tempo será bem empregado. O feiticeiro é capaz de envia-la de volta ao
passado.
- Hmn, bonecas
falantes, adagas misteriosas, criaturas estranhas. Sua história é interessante.
- O senhor pode mesmo
me ajudar.
- Talvez sim.
- Como assim talvez?
- Bem minha cara, há
muitos fatores em questão. Não posso enviar teu corpo ao passado, apenas o
espirito. Então chegando la teu espirito terá de buscar um receptáculo. Mas
isto não é o pior. Uma viagem dessa pode ter efeitos colaterais por causa da
falta de estabilidade. Pode ser que você chegue ao passado sem se lembrar o que
é ou o que foi fazer. Pode ser um estado temporário e alguns dia você se
lembre. Pode ser que algum evento traumático te faça lembrar. Ou talvez você
nunca lembre.
- É um risco que quero
correr.
- Bom, que seja como
você quer.
1993
Ela despertou em um
lugar escuro. Não se lembrava de quem era ou como chegou ali. Se levantou e
começou se mover devagar no escuro No caminho derrubou alguns objetos. De
repente uma porta se abre e uma luz se acende. Seus olhos ficam ofuscados,
desacostumados com a luminosidade. Aos poucos ela vai habituando a visão. Então
ela vê duas garotas.Ela se assusta e as garotas olham diretamente para ela.
Após alguns instantes uma das garotas se aproxima devagar e toca em seu corpo.
Ela se retrai e a garota então pergunta:
- Você...você fala?
Ela sem saber ao certo o que dizer apenas responde
- S-sim.
Fim
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